terça-feira, 13 de outubro de 2009

O fim do mundo, cap. 5

Dois dias já haviam se passado desde que contamos ao Ben sobre os Escolhidos e ele continuava a não dar a mínima pra gente, aliás, eu nem falava mais com ele de tanta vergonha que eu tava. Claro que eu não ligava muito pra opinião do gordo, mas eu odiava quando as pessoas me olhavam com aquele jeito de quem ta me achando um idiota.
Eu e Emily estávamos em um ônibus quase vazio. Tinha apenas a gente, uma velhinha sentada dois bancos à nossa frente e uma mulher com dois filhos pequenos que ficavam fazendo bagunça. Eu odeio andar de ônibus, principalmente quando a pessoa que senta do teu lado tenta puxar conversa. Emily, no entanto, apesar de estar ao meu lado havia uns 20 minutos, não falava uma palavra. Isso me deixava muito desconfortável, pois a gente que se conhecia devia conversar numa situação dessas. Fiquei pensando em coisas para dizer, só pra quebrar o clima.
- E então... Tua casa é muito longe?
- Não muito. É daqui a três quadras.
- Ah...
Emily havia me convidado pra ir à sua casa aquela tarde. Disse que precisava me mostrar alguns “documentos” e conversar sobre “assuntos secretos”. Com certeza o tema seria a grande ameaça alienígena, a revista óvni ou coisas do tipo. Eu realmente achava um saco quando ela me fazia ouvir aquelas bobagens, mas eu tava muito curioso pra saber onde ela morava, como era sua família, como era seu quarto e essas coisas. Seria tudo tão estranho quanto ela? Pensei que não teria nada a perder em fazer uma rápida visita à sua casa.
-É aqui que a gente desce. – disse ela, depois de uma longa viagem e pouquíssima conversa.
Estávamos em frente a um prédio. Não imaginava que ela morasse num apartamento. Não sei por que, mas eu imaginava uma casa meio macabra, cheia de gatos e corvos e sei lá mais o que. O prédio era antigo. Entramos e começamos a subir um terrível lance de escadas por que o elevador tava quebrado. Cara, a menina morava no sétimo andar. Quase morri de tanto subir degrau. Chegamos à porta do apartamento e eu tava ofegante como um porco, mas tentava esconder isso dela enquanto ela procurava pela chave na bolsa. Enfim entramos. Era um apartamento normal, com pouquíssimos móveis, o que dava uma sensação de ser bem espaçoso.
- Com licença. – falei ao entrar. – A tua família ta em casa?
- Não. Eu moro sozinha.
- Sério? Eu não sabia disso. E teus pais, onde moram?
- Meus pais são separados. Minha mãe mora na capital e meu pai no exterior.
- Puxa, e deixam vc morar sozinha? Meus pais nunca deixariam.
- Meus pais não se importam com isso. Eu mudo da casa de um parente para outro desde a separação, quando eu tinha nove anos. Este ano eu propus a eles que me pagassem o aluguel de um apartamento pra que eu pudesse morar sozinha.
- Mas vc não tem medo de ficar aqui sozinha?
- Não. Eu gosto daqui, e dizem que esta vizinhança é bem segura, então não me preocupo tanto.
- E teus pais, eles ligam bastante?
- Não muito. Às vezes minha mãe liga pra saber se ta tudo bem, mas é coisa de uma vez por mês.
- Credo, teus pais não dever se importar muito com vc.
Eu sou mesmo um idiota. Esta não é, nem de longe, a melhor coisa pra se falar numa situação dessas, principalmente quando eu finalmente consigo adentrar o covil da menina mais estranha do colégio. Ela não olhava pra mim enquanto falava.
- Não muito. Meus pais não se dão muito bem. Meu pai dizia, na época da separação, que minha mãe havia roubado a sua juventude, sua liberdade e outras coisas desse tipo. Minha mãe dizia que a culpada era eu, que era estranha e só dava tristeza pro meu pai.
- Nossa, que coisa horrível pra se falar pra uma filha! – disse eu, tentando reparar a situação que acabava de criar.
- Depois que eles se separaram, meu pai dizia que voltaria pra Rússia e que minha mãe devia cuidar de mim, mas minha mãe queria recuperar o tempo que meu pai havia roubado da vida dela e me deixou com uma tia que já tinha seis filhos. Eu não gostava muito. Não gosto de morar com muita gente, e a minha tia se incomodava bastante comigo.
- Ué, por quê?
- Não sei.
Talvez fosse pelas esquisitices dela.
- E daí, vc veio pra este apartamento?
- Não, depois de morar com essa tia, eu morei com meu avô.
- E o velhinho era legal?
- Era sim. Morávamos apenas eu e ele num casarão bem antigo. Ele já tava muito velho, tinha um monte de doença e vivia esquecendo do meu nome. Ele vivia me chamando de Christine por engano. Depois de um tempo eu nem o corrigia mais. Apesar disso, era bom morar naquele casarão por que ele não se incomodava muito comigo e nem eu com ele. Foi um tempo bem legal.
- E por que vc saiu de lá?
- Ele teve um derrame e morreu. O casarão foi dividido entre os meus tios que o demoliram e venderam o terreno pra uma gente que construiu um supermercado no lugar do casarão. Eu tive que morar mais um tempo com aquela tia dos seis filhos até que ela discutiu com a minha mãe por telefone. A briga foi bem feia e me mandaram de ônibus de volta pra casa da minha mãe, mas eu e ela não conseguimos conviver muito bem, ai eu voltei pra cá.
- Voltou pra cá?
- Sim. O casarão do meu avô era aqui na cidade.
- Ah...
Dava pra entender por que ela era tão estranha. Aquela vida parecia ser uma droga. Depois dessa conversa, ela me chamou pro seu quarto. Eu tava louco pra isso. Apesar das minhas expectativas, o quarto era relativamente normal. Havia uma cama de solteiro desarrumada com um lençol azul claro e um edredom azul escuro, um guarda-roupa tamanho médio, uma estante e uma mesa com um computador.
- Pode sentar aqui. – disse ela, me apontado a cama.
Fazia tempo que eu não entrava em um quarto de menina que não fosse a minha irmã idiota. Sentei na cama desarrumada enquanto ela procurava por alguma coisa entre as gavetas da mesa. Era um livro bonito que parecia ter sido comprado recentemente.
- Max, deixa eu te mostrar uma coisa que eu ando pesquisando.
Era um livro sobre ufologia. Ela se concentrou num parágrafo sobre calendário maia. Era tudo uma grande piração que ela me explicava detalhe por detalhe.
- Veja bem: segundo este calendário dos maias, uma civilização que possivelmente entrou em contato com seres extraterrestres, o fim do mundo está bem próximo. Fazendo uma média entre as previsões deste e de outros livros sobre o assunto, eu presumo que a invasão ocorra em julho do ano que vem. No entanto, os humanos do futuro nos dizem que a invasão ocorrerá em 2020. Talvez algo possa ter mudado no espaço-tempo de nossa dimensão com relação à dimensão do futuro, e...
Ela falava bastante, mas eu não prestava atenção. Assim que pegou o livro, ela se sentou ao meu lado na cama. A perna e o braço dela encostavam nos meus. Ela trazia o livro pra bem perto de mim a fim de que eu prestasse a maior atenção, mas a única coisa pra qual eu ligava era uma mecha de cabelo dela que caia sobre o meu ombro que me fazia sentir um leve cheiro de xampu. Enfim, estávamos no quarto de uma menina sozinha em casa, sentados na mesma cama desarrumada, levemente encostados um ao outro. Eu não tinha como pensar em outra coisa. Pensava em esticar meu braço como se quisesse espreguiçar e, aos poucos, passá-lo por volta da cintura dela. A Emily era muito magra e tinha as pernas finas, mas tinha uma cintura que parecia bastante agradável. Eu faria tudo isso, é claro, se não fosse um medroso. De repente, ela concluiu aquela conversa (pra qual eu não dava nenhuma atenção) repentinamente, levantou e se sentou em frente ao computador, o que me frustrou bastante.
- Olha só, quero te mostrar mais uma coisa. – disse ela, me chamando para o computador.
- O que é isso?
- É o e-mail que eu recebi dos humanos do futuro. Achei melhor compartilhar isso com vc.
- Por que eles mandam essas coisas pra vc e não pro resto de nós?
- Não sei. Poderíamos perguntar isso diretamente pra eles, mas eu já tentei me comunicar, enviando e-mails para o remetente, mas nunca me responderam.
Aquilo sim era algo idiota. O e-mail era “humanos@dofuturo.com”. Pensei que ela poderia ter criado aquele e-mail idiota apenas pra curtir com a minha cara. O assunto era “Antigas profecias maias”. Ela abriu aquilo e se pôs a ler em voz alta pra mim. Eu jamais abriria um e-mail como aquele. Só podia ser vírus. A coisa seguia assim:

Caros Escolhidos, por meio desta, esperamos transmitir a vocês algumas informações úteis a respeito do caso alienígena. Como sabem, uma civilização bélica e tecnologicamente superior à nossa invadirá nosso mundo no ano de 2020. A invasão se tornará possível graças a um portal inter-dimensional que se abrirá devido ao alinhamento dos planetas de nossa galáxia. Recentemente, descobrimos mensagens talhadas em pedra pelos antigos maias que previam, com grande riqueza de detalhes, os acontecimentos terríveis que estariam por vir. Ainda não conseguimos decodificar toda a mensagem, O que descobrimos até agora foi que, no ano em que vocês vivem, nasceriam nove escolhidos que podem evitar a abertura do portal. Segue abaixo a definição destes escolhidos, segundo as previsões maias: Primeiro escolhido, planeta: Terra. Virtude: Amizade. Segundo escolhido, planeta: Saturno. Virtude: Gentileza. Terceiro escolhido, planeta: Júpiter. Virtude: Honra. Quarto escolhido, planeta: Urano. Virtude: Coragem. Quinto escolhido, planeta: Marte. Virtude: Temperança. Sexto escolhido, planeta: Mercúrio. Virtude: Compaixão. Sétimo escolhido, planeta: Vênus, Virtude: Amor. Oitavo escolhido, planeta: Netuno. Virtude: Sabedoria. Nono escolhido, planeta: Plutão. Virtude: (ainda não conseguimos decodificar a virtude do representante de Plutão).
Como vocês devem saber, nossa situação é precária e raramente conseguimos nos comunicar com vocês, pois a comunicação com o passado ainda exige muitos recursos, mas entraremos em contato o mais breve possível assim que descobrirmos algo novo. Até lá, desejamos sorte a vocês.

Atenciosamente
Humanos do futuro

Os caras só podiam estar de sacanagem pra cima de mim. Aquela conversa sobre “planetas” e “virtudes” parecia roteiro daqueles desenhos educativos horríveis que passavam antigamente. Sem falar que Plutão já não era mais considerado planeta. Esses humanos do futuro são estúpidos ou o quê?
- Eu acredito que a palavra “virtude” aqui tenha sido mal traduzida. – disse a estranha depois de ler aquela balela. – Se a gente ver bem, coisas como “amizade” e “amor” não são, necessariamente, qualidades, mas se reverem às relações humanas. Acredito que isto seja um símbolo do poder que cada um de nós tem.
Que droga, tava tudo tão bem enquanto estávamos sentados na cama, tão próximos um do outro.
- Escuta Emily, não seria melhor parar com estas suposições? Esse e-mail pode até ser fake, uma brincadeira de alguém ou qualquer coisa assim.
- É possível, mas é melhor a gente não menosprezar uma oportunidade a mais de compreender a nossa situação e as nossas capacidades para a guerra que está por vir, afinal, somos os Nove Escolhidos. Seria, também, muita coincidência, pois o e-mail e o Canal X têm muitas coisas em comum.
Eu já passava a achar que o próprio Canal X fosse uma grande palhaçada, inventada por uma rede de TV pretensiosa querendo fazer um reality show com a nossa burrice. Ela continuava me bombardeando com informações a respeito da terrível invasão, até que, de repente, a campainha do apartamento toca.
- Quem poderia ser? – perguntei.
- Provavelmente o Ben.
- O Ben? Mas por que diabos ele viria aqui?
- Eu chamei todos os escolhidos para essa reunião. O Ray disse que estaria ocupado e que sentia muito por não comparecer. Ben disse que viria, porém um pouco mais tarde, pois tinha que buscar os irmãos mais novos na escola.
- Mas o Ben jamais levaria a sério essa história toda que vc me contou!
- Acredito que não. Contei a ele, durante a aula, qual seria o tema da nossa reunião e mesmo assim ele compareceu. Isso só pode significar que ele assistiu ao Canal X e que acreditou no que viu.
Dito e feito. A menina abre a porta e entra ninguém menos que Ben, vermelho e ofegante de uma forma absolutamente escandalosa após subir os sete andares. Aquele gordo idiota não podia ter aparecido numa hora mais inconveniente.
- Droga, Ben, o que vc ta fazendo aqui?
- Foi ela quem me convidou e vc não tem nada haver com isso. – disse o gordo apontando pra Emily. O Ben tinha a mania de não chamar os outros pelo nome, principalmente meninas.
- Não vai me dizer que viu o Canal X e agora voltou pra nos pedir desculpas pela tua falta de educação?
- Eu não sei o que vcs fizeram com a minha televisão, mas ainda não acredito em uma palavra que vc disse aquele dia.
- Então por que vc ta aqui.
Ben desviou o olhar. A pergunta parecia tê-lo deixado nervoso.
- Não é da tua conta.
A Emily pediu para que sentássemos na cama para que ela pudesse explicar mais uma vez aquela história toda. Ela permanecia de pé e eu, que antes estava levemente encostado a uma menina sozinha em seu quarto, agora estava levemente encostado a um gordo suado e ainda ofegante que curtia comer meleca de nariz. Passamos o dia daquele jeito. Naquela noite eu mal pude dormir de tanto ódio daquele gordo.

Um comentário:

blur disse...

*dança da curtição espontânea*