segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Super Adventure - Prelúdio

Os pais do pequeno Pedro, de dez anos, tinham uma viagem muito importante a fazer, então o deixaram com seus avós que moravam no interior. Era um sítio pequeno, com algumas poucas galinhas, duas vacas e um cavalo preguiçoso chamado Bartolomeu. O menino tinha pouco a fazer naquele local desolado. Passava suas tardes assistindo os poucos canais chatos que passavam na televisão da sala de estar. A casa toda tinha cheiro de velhice, uma mistura de mofo com cheiro de sabão. Havia moscas por toda a parte. Pedro estava convencido que aquele seria um fim de semana lento e tedioso.

Não o deixavam se aventurar muito além de onde se podia ver da janela, então o garoto decidiu explorar o casarão. Gostava de lugares antigos, apesar de tudo. Gostava de vasculhar cômodos pouco utilizados, como depósitos e porões. Tinha a sensação de adentrar um santuário abandonado ao subir ao sótão, lotado de caixas repletas de velharias, amontoadas umas sobre as outras. Mexeu em tudo até encontrar algo que lhe chamasse a atenção, o que não demorou tanto: em meio a um monte de álbuns de infância e ferramentas, um console de videogame antigo. Não parecia com nada que conhecesse. Era demasiado grande e pesado, assim como os controles. Aquilo não podia ser nem o mais antigo entre os Nintendos, na verdade, parecia até mais antigo que o Atari. Mais antigo até que aqueles que vinham com Pong na memória e tinha os controles direto no console, mas tinha uma entrada grande para cartucho. Vasculhou mais, caixa por caixa, até encontrar um único cartucho robusto, com símbolos estranhos e números desenhados no adesivo. A descoberta reanimou o desolado menino que já havia se conformado com a morte por tédio excessivo. Aquele jogo antigo devia ser uma droga, mas era, com certeza, melhor que o canal do boi e o do mercado de pulgas.

A velhinha estava lá fora cuidando da hortinha e o velho havia subido à cidade de caminhonete, mas Pedro era esperto e sabia se virar. Pegou a pequena televisão do quarto dos avós e a levou ao sótão, onde havia uma tomada 110. Ligou a T.V. e, em seguida, plugou os cabos de áudio e vídeo e a fonte do misterioso videogame. Deu certo! Bastava encaixar o cartucho e uma aventura, por mais modesta que fosse, estaria confirmada. Desapontamento. Não funcionou de primeira, mas o menino lembrou dos antigos falando saudosamente dos tempos em que se assoprava a “fita”. Puxou a maior quantidade de ar que seu pulmão agüentava e soprou com força. Pó e pedaços de uma espécie de lã voaram para todos os lados. Expectativa. O “click” do cartucho encaixando na entrada correta. Deu certo!

Deu-se início a musica chiptune. Um bando de símbolos esotéricos apareceu na tela. O menino não entendia nada até o momento em que, de repente, a tela se escureceu e surgiu um diálogo em letras brancas em português. O jogo era nacional? Quem diria.

“ Bem vindo ao Super Adventure! Antes do Herói prosseguir, um breve questionário deve ser respondido. Seja sincero. Não há nada a temer.”

Deu-se, então, início a um interminável repertório de perguntas inúteis, desde “qual a sua cor favorita?” e “quantos anos você tem?” até “ se você encontrar uma carteira na rua, cheia de dinheiro, tentaria devolve-la ao dono ou ficaria com o dinheiro?” e “você gosta dos seus pais?”. A última questão foi: “Está preparado para uma aventura de verdade?”. Pedro não esperava nada menos que isso para sua vida. Uma nova caixa de diálogo se abriu:

“Parabéns. Você é o escolhido! Agora os portais para do país mágico de Aventura se abrirão para o Herói. Seja corajoso, Pedro, e não chore.”

O jogo o chamou de Pedro? Mas em momento algum foi requisitado o nome do jogador. Estranho. Deu-se, então, uma animação introdutória à aventura. Basicamente o herói Pedro havia sido escolhido para resgatar a princesa de Aventura das garras do terrível Feiticeiro.

O enredo era simples. O garoto estava acostumado a jogar games de ficção cientifica com histórias complexas e diálogos extensos e complicados. Ajeitou-se sobre a almofada em que sentava e preparou-se para a aventura. Então a tela escureceu e a calma música de prelúdio cessou repentinamente. Alguns segundos sem nenhuma resposta. Teria o jogo travado? Assim que Pedro se levantou para resetar, um barulho alto e estridente passou a ser berrado pela televisão, e um monte de cores e formas começou a passar rapidamente pela tela, girando de maneira hipnótica.

Aquela esquisitice já era demais, mas antes que Pedro pudesse desligar o videogame, uma força estranha pareceu-lhe conduzir até a televisão. Na verdade, estava sendo arrastado por uma força gravitacional. Como um vento. Estava sendo dragado para um furacão. A força crescia rapidamente. O menino se agarrou ao que tinha por perto, mas até as caixas, por mais pesadas que fossem, pareciam estar sendo puxadas pelo buraco negro que se abriu na tela. Tentou gritar, pedindo ajuda à avó, mas o barulho emitido pela televisão era tão absurdamente alto que nenhum de seus pedidos por socorro pode ser ouvido. Nem ele próprio podia ouvir seus gritos. Então a força se tornou tanta que Pedro voou em direção à televisão e atravessou a tela. Logo estava atravessando um túnel cilíndrico composto de uma espécie de energia colorida. Antes que pudesse conceber toda aquela situação, o menino chegou a seu destino. O Herói chegou à terra mágica de Aventura.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Um desabafo realmente mediocre e pretencioso

Viver é um negócio ingrato mesmo
Vai você, vivendo uma vida medíocre
E a vida é um constante sofrimento e pouco prazer
Todo o prazer causa dor em proporções geométricas
Prazer 1 = dor 2
Prazer 2 = dor 4
Prazer 3 = dor 8
Prazer 4 = dor 16
Prazer 5 = dor 32
Prazer 6 = dor 64
Você pegou a idéia
Você, então, escolhe viver a base de prazer 1, dor 2
Mas o prazer 1, com o tempo, torna-se invisível, inexprimível, abstrato... uma desculpa feliz e modesta, enquanto a dor 2 é acumulada, potencializada e acaba se tornando absolutamente incomoda e insuportável.
Prazer 1 + prazer 1 = prazer 1
Dor 2 + dor 2 = dor 4
Chega uma hora que o mais triste é tentar não fazer sofrer aqueles cuja felicidade é te manter vivo, mesmo às custas de uma vida medíocre de constante prazer 1, dor 2
E não há mais sequer um estimulo externo que te pareça minimamente atraente
Daí você passa a viver uma vida arrastada pela lateral, de qualquer jeito
E você passa a pensar que morrer não deve ser tão ruim assim
Que tanto faz – não vai mudar muita coisa mesmo
Viver é um negócio muito ingrato mesmo...

terça-feira, 13 de abril de 2010

Crônicas do Mundo 2

~ O Clube ~
E. e K. estavam a caminho de um lugar muito legal. K. estava para apresentar nosso herói ao clube mais maneiro do Mundo 2, que se reunia todos os dias numa casa azul na Floresta das Ilusões. Era um lugar onde apenas meninos podiam entrar. Um clube masculino, onde havia vários bonecos de ação, carrinhos, dinossauros, bicicletas, videogames, mesas de tênis, pebolim e todo o tipo de brinquedo do agrado dos meninos. Também era realizado todo o tipo de esporte, dos mais simples como uma amistosa partida de futebol até os mais radicais. Era um parque dos sonhos para qualquer garoto, repleto de amigos e brincadeiras. Segundo K., neste lugar maravilhoso havia até mesmo uma pista de kart. O pequeno E. estava ansioso.

A casa era realmente grande. Os garotos disseram a senha secreta e passaram pela primeira porta da casa azul. Deram em uma pequena sala com um cabide e uma placa que dizia “Favor, depositar seu casaco e chapéu aqui”. Como E. não usava casaco nem chapéu, passou direto para a segunda sala, onde havia vários tênis e sapatos deixados ao chão, no canto, e uma placa que dizia “Favor, deixar seus calçados aqui”. E. não gostava da idéia de praticar esportes sem seus tênis, mas enfim, regras são regras. A próxima sala era a mais estranha de todas. Havia um balcão no qual um pequeno querubim atendia os meninos que passavam até aquela fase, e uma placa que dizia “Favor, deixar suas demais roupas aqui”. Era uma situação estranha e um pouco desconfortável, mas como K. foi automaticamente se despindo ao entras naquela sala, E. decidiu fazer o mesmo. Regras são regras.

Ao passar pela ultima porta, os meninos adentraram o clube. Era diferente do que E. esperava. Na verdade, aquele lugar parecia mais uma casa de banho, repleta de meninos e querubins que serviam comidas e traziam toalhas aos membros do clube. Estavam presentes todos os garotos do Jardim, como R. L. e O. Os meninos foram recebidos por S., atual presidente do clube. Um cara legal que os levou para conhecer o proprietário daquela casa azul. Foram levados até a diretoria, onde conheceram Eros, um dos 127 deuses do Mundo 2. Era um anjo gigante (Devia ter mais de dois metros), com a pele prateada e brilhante, cabelos dourados e uma voz delicada e melodiosa. A diretoria era um lugar estranho, onde os demais querubins louvavam e dançavam em torno da imagem de um grande falo dourado, símbolo da masculinidade daquele lugar.

E. se sentia desconfortável, mas sabia que logo os jogos e brincadeiras começariam e isso o deixava contente. S. explicou a E. que, antes das brincadeiras começarem, era preciso que membros novos fossem levados à Banheira da Iniciação. Uma banheira mágica onde se podia dormir por horas proporcionadas por uma sensação agradável. A mágica estava em dormir naquelas águas, pois os sonhos que se tinham lá eram sempre de situações radicais. O próprio K. sonhou que pulava de pára-quedas enquanto S. sonhara que estava em um carro de corridas a trezentos quilômetros por hora. Aquilo parecia emocionante, e E. resolveu tentar.

Foi deixado a sós na pequena sala escura onde havia aquela tal banheira. Entrou lentamente e se deitou na água quente e reconfortante para, assim, esperar até que o sono lhe batesse. Não demorou tanto, pois as essências contidas naquela água possuíam um poderoso calmante.

E. dormiu, mas o sonho não foi tão radical quanto esperava. Na verdade, teve um sonho idiota em que A. estava vestida de Hitler, com direito a bigode postiço e tudo, enquanto batia continência para ele. A maior surpresa E. teve ao despertar e descobrir a verdadeira mágica daquela banheira. Sentiu-se estranho, diferente e percebeu que seus cabelos estavam compridos. Primeiramente temeu que tivesse passado anos naquela banheira, mas ao se levantar percebeu a verdadeira mágica. Aquela água havia-lhe mudado o sexo. Agora era uma menina.

E. se desesperou. A primeira coisa em que pensou foi que estaria em maus lençóis se alguém descobrisse uma menina naquele lugar. Os querubins provavelmente o(a) atacariam, pois odiavam meninas. Pensou em sair de fininho sem que ninguém percebesse as mudanças em seu corpo, mas estava nu(a) e suas roupas estavam no balcão, guardadas pelo pessoal da organização.

E. saiu daquela sala tentando ao máximo esconder seu corpo. Sentia vergonha e humilhação. Passou rapidamente pelas outras banheiras de cabeça baixa, ouvindo os risos entrecortados dos demais garotos do Jardim. Pensou que talvez a situação toda pudesse ser um trote feito aos novatos. Todos riam de E. que procurava desesperadamente por K. ou S. para exigir explicações. Enfim encontrou S., que segurava em suas mãos um grandioso buquê de flores e uma caixa de bombom. Que diabos significaria aquilo?

- Olá A. Gostaria de convidá-la para um encontro. Por favor, aceite essas rosas – disse S. entregando as rosas a E.

Então nosso herói (heroína) se olhou pelo espelho que havia sobre o balcão e enfim percebeu que não havia se tornado qualquer menina. Havia se tornado A. Sentiu algo indescritível. Seu coração bateu com tanta violência que o arrebatou de volta ao Mundo 1. O que o Mundo 2 poderia querer lhe dizer, afinal? Após se acomodar em sua maca, E. contemplou aquele belo jardim pela janela de seu quarto e pensou sobre ser A. Concluiu que perdeu sua única chance de entender completamente o que se passava pela cabeça e pelo coração de A.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Crônicas do Mundo 2

~ A Árvore da Vida ~

A. despertou preguiçosa. Não sabia onde estava, mas era um lugar morno e confortável. Algo dava à menina a maior sensação de segurança que já havia sentido. Estava tão escuro que A. mal podia ver sua própria mão em frente aos olhos, aliás, estariam aqueles olhos abertos? Era uma situação misteriosa, mas A. sentia muito sono. Sabe aquela sensação que se tem quando se desperta no inverno pensando que já é hora de levantar, mas, ao olhar o relógio na cabeceira da cama, se descobre felizmente que ainda faltam algumas horas de sono a serem dormidas? Esta sensação boa era o que A. sentia e o que a fazia se aconchegar e continuar a dormir naquele lugar estranho, porém acolhedor.

E assim A. passou, despertando algumas vezes apenas para se virar e se aconchegar para, então, voltar àquele sono tão preguiçoso e agradável. Sentia que havia alguém velando por seu sono. Uma voz delicada e compreensiva que dizia: “Volte a dormir, minha menina, pois ainda não é sua hora”. A. se esqueceu dos prazeres e das dores daquele Jardim. Esqueceu-se, também, de E, J. e todas aquelas pessoas que por hora a machucavam, outras horas lhe davam tanta alegria e prazer. Estava sozinha, hibernando num mundo de carinho e proteção misteriosa.

A. não lembra quanto tempo passou naquele lugar, mas lembra a dor que sentiu ao som da moto serra rasgando a madeira, e da voz desesperada de E. que a chamava. A serra chegava cada vez mais próxima de sua bolha. Enfim a bolsa estourou. E. sabia que aquela atitude era egoísta, mas precisava de A. para desvendar o segredo daquele jardim, o Tesouro Divino do Mundo 2.
E A. foi retirada a força do ventre de carne no cerne da Árvore da Vida. De volta àquele jardim de dor e prazer. De volta ao Mundo 2?

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Crônicas do Mundo 2

~ O Dia dos Namorados ~
Enfim era chegado o Dia dos Namorados. A. estava ansiosa. As crianças que já tinham idade suficiente para se interessar pelo assunto se reuniriam naquele Jardim para celebrar e fazer jogos de amor. Era o primeiro ano de A. Estariam presentes todas as meninas mais moças, como J., B., V. e F. Mais alguns meninos mais maduros como K., R., L. e S. Meninos muito atraentes, principalmente S, mas A. já sabia para quem daria seu primeiro beijo. E. era seu melhor amigo e não era tão feio assim. Na verdade era até bem bonitinho.

As brincadeiras eram todas armadas pelas meninas, que faziam uma reunião da corte feminina com algumas semanas de antecedência e escolhiam com que garoto cada uma ficaria. A prioridade era sempre das meninas mais velhas, então A. foi a ultima a escolher. Por sorte, ninguém escolheu E. e tudo saiu como planejado.

As crianças estavam reunidas próximas à Árvore da Vida, onde seriam feitas as tais brincadeiras de amor. Cúpidos gordinhos e rosados auxiliavam e arbitravam os jogos. Era chegada a vez de A. J. vendou nossa protagonista, que faria um pega-pega às cegas, sozinha contra todos os meninos. O garoto que A. pegasse seria só dela pelo dia inteiro. J. sussurrou ao seu ouvido “Está pronto”. Havia sido combinado que J. daria a E. um guizo para que A. pudesse reconhecer seu amigo pelo som.

Então A. correu ao léu, ouvindo risadinhas ao fundo, procurando distinguir o som do pequeno guizo entre todos os barulhos que ouvia só quando estava privada da visão. Enfim A. pegou o guizo, mas, ao tirar a venda, teve uma terrível decepção. J. a havia enganado, e quem segurava o guizo era ninguém menos que O, o menino gordo e sujo, com chapeuzinho de hélice e cheiro de vômito. A. ficou furiosa com a brincadeira e procurou E. e J. para satisfações, mas os dois haviam sumido. O. exigiu seu dia com nossa infeliz heroína, mas A. disse que jamais daria seu primeiro beijo a um monstro como ele.

A. correu por todo o Jardim em busca de J. e teve mais uma terrível decepção. J. estava roubando seu primeiro beijo de E. às escondidas atrás da Árvore da Vida, enquanto aquele bafomé horrível os unia por uma corrente dourada e dizia: “Eu os declaro, marido e mulher”. A. então entendeu o sentido daquele demônio às costas de seu amigo. Aquele era um feitiço de amor. J. era esperta e sabia fazer este tipo de magia.

A pobre menina sentiu uma tonelada no peito e as pernas perderam as forças. Antes que a dor a pudesse despertar, O. surgiu sorrateiramente pelas suas costas, tomou seu braço e o torceu com tanta força que fez a menina cair de joelhos. O. era violento e teimoso. Jamais aceitaria um “não” como resposta.

- Você é minha pelo dia inteiro. É assim que a brincadeira é. Agora eu quero o beijo ao qual tenho direito.

Todos os meninos e meninas riam do destino de nossa heroína - passar o Dia dos Namorados com o nojento O. - e antes que A. pudesse fugir do Mundo 2, O menino monstro teve a honra de roubar seu primeiro beijo de amor.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Crônicas do Mundo 2

~ Maldição ~

A. e E. brincavam pelo Jardim. O Dia dos Namorados estava chegando – o dia prometido – e A. estava feliz. Corriam pelos salões do Palácio Eterno que havia naquele jardim. Atravessando um dos grandiosos corredores daquele palácio, enquanto A. perseguia E. em uma partida de pega-pega, passaram por um espelho e a menina viu algo terrível que a assustou bastante. O reflexo revelava E. acompanhado de perto por um bafomé de aparência horripilante. O demônio invisível flutuava sempre às costas do garoto enquanto encarava sua nuca com aqueles olhos vermelhos. A. resolveu se calar. Sabia que apenas ela seria capaz de ver o demônio. O que significaria aquela aparição? A. pensava em sua cama como sempre fazia antes de dormir. Aquele bafomé... Só havia uma explicação: E. estava amaldiçoado, mas por quem?

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Crônicas do Mundo 2

~A Condessa~

Havia naquele Jardim uma bela estrada de tijolos amarelos. J. sempre estava lá, às seis da tarde, esperando aquela elegante carruagem passar. J. entrava no carro e voltava apenas ao anoitecer. A. estava extremamente curiosa quanto a tal carruagem. Depois de muito insistir, J. permitiu que A. a acompanhasse nessa viagem por apenas um dia, contanto que não contasse a ninguém o que acontecia dentro daquela caleche. Era segredo.

Ao anoitecer, a carruagem parou em frente às meninas. Uma bela mulher chamou-as para dentro. Aquela era a Condessa. J. e A. estavam de frente para a belíssima nobre, que fumava um narguilé de forma elegante. Depois de algumas reverências, a Condessa deu a J. uma carreira de um pó dourado sobre uma bandeja de vidro. J. aspirou todo o pó de uma só vez e riu de forma idiota e descontrolada. O mesmo pó foi oferecido a A., mas esta recusou. Foi-lhe oferecido, também, o narguilé, mas a menina não queria usar aquelas drogas. Apesar da situação perturbadora, aquela viagem estava divertida. A tal Condessa era uma ótima anfitriã. O erro de A. foi aceitar uma das balas que estavam no pote à sua frente. Tudo naquela caleche estava envenenado. A. foi drogada e dormiu profundamente.

Nossa infeliz protagonista despertou com frio, em uma cela de masmorra. As paredes eram de pedra maciça e gelada. Havia uma coleira de ferro em torno de seu pescoço. Tentou fugir, mas era inútil - as grades eram de ferro. Depois de muito tempo de solidão, a porta é aberta por J., que usava um vestido preto bastante discreto sob um avental branco. Estendeu roupas como as suas para A. e disse:

- Vista-se logo! Nossa dona, a Condessa de Bathory, ordenou que limpássemos o salão e a cozinha. Apresse-se, se não quiser ser punida!

J. parecia falar sério. A. se apressou em vestir as roupas de serviçal, pois não queria ser punida de forma alguma. Ao andar pelo gigantesco casarão da Condessa, as duas passaram por uma janela pela qual podiam ver os arredores do castelo. Havia um grande muro coberto por arame farpado que cobria toda a mansão, enquanto ogros horrendos, cada um segurando pela coleira quatro cães com chifres e olhos vermelhos, faziam ronda para se certificar que nenhuma das escravas fugiria daquele antro. A. sentiu medo.

As duas meninas passaram a vassoura e o espanador por todo o grandioso salão de festas, depois lavaram o chão e a louça daquela cozinha nojenta, infestada de baratas e ratazanas. Estava tudo sob controle, até que J. derrubou, acidentalmente, uma xícara de marfim ao chão. O barulho foi estrondoso. A Condessa surgiu, enfurecida, com o rosto coberto por um véu negro e um chicote na mão. J., apavorada, disse, apontando para A.:

- Foi ela, madame! A culpa é toda dela. É mesmo uma desastrada!

A. quis falar a seu favor, mas o medo a deixou sem palavras. A Condessa respondeu:

- Não importa qual das duas foi a culpada. As duas pagarão. Já fizeram o suficiente limpando o salão. Não há mais serventia para vocês aqui. São meninas inúteis. Imprestáveis! A única coisa que ainda podem me oferecer é a beleza da juventude. Guardas! Levem-nas daqui!

Quatro ogros surgiram de repente, tomando as meninas de forma violenta. Foram levadas até a Câmara do Sacrifício onde receberiam a pior das punições. A primeira seria J, e A. presenciaria o castigo para temer a seguir, pois o mesmo destino a aguardava. A. estava em uma cela logo ao lado, enquanto J. foi acorrentada e içada ao teto de forma a ficar suspensa no ar.

- Você é realmente bonitinha. Seu sangue deve conter muita beleza! – disse a Condessa para J. – Não posso dizer o mesmo de você. É tão feia que sinto pena, mas alguma beleza, por mais que extravagante, em seu sangue deve haver, mesmo que seja pouca. – continuou Bathory, agora para A.

A seguir, um dos ogros trouxe para Bathory uma horripilante gadanha, com a qual a terrível Condessa passou a cortar a pele de J. O sangue da menina desesperada escorria até o corpo de sua algoz, e esta se rejuvenescia, tornando-se mais bela e moça.

A. alcançou o limite de medo e se desconectou antes de qualquer situação perigosa, claro. A viagem era como um sonho, mas as expressões do Mundo 2 começavam a fazer a menina pensar profundamente em seus sentimentos. Na verdadeira A.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Crônicas do Mundo 2

~Desventuras no Castelo Voador~

A. despertou, mais uma vez, em um lugar desconhecido. Dormia em um divã bonito, coberta por uma manta veludosa. Estava em uma sala entranha, com um belo lustre dourado, uma poltrona vermelha à sua esquerda, uma lareira acesa à sua frente e um tapete de pele de urso ao chão. Era uma sala confortável e A. estava sonolenta, mas antes que pudesse puxar sua coberta e voltar a dormir, uma pequena tropa de brinquedos, que contava com bonecas, ursos de pelúcia e soldadinhos de chumbo, atravessa a sala de forma apressada. Os brinquedos diziam: “A Senhorita está triste! Precisamos nos apressar!”. Uma bonequinha desajeitada tropeçou e caiu de cara no chão. Os outros a deixam para trás. A pequenina levanta, bate seu vestidinho e volta a correr, implorando: “Esperem por mim!”. Espere... Aquela não era Blanche, uma das bonecas de A.? A menina ficou curiosa e decidiu seguir os brinquedos.

Passou por vários corredores curiosos, com quadros estranhos nas paredes. Retratos de gente velha. De senhores de bigode e cartola e de senhoras gordinhas com chapéus escandalosos. As pessoas nos quadros acompanhavam a menina com os olhos, o que era um tanto perturbador. Enquanto subia a escada em espiral de uma das torres, decidiu olhar pela janela e viu nuvens, pássaros e um mundo pequenino, a muitos metros abaixo. Estava num castelo voador, e voavam tão alto que quase podia pegar uma estrela com as mãos.

No fim da escadaria, A. chegou a uma grande e pesada porta de madeira com armações e uma pesada argola de ferro. A. não era lá muito forte, então teve que fazer muita força para abrir aquela porta ruidosa. A. entrou em um lugar lindo. Uma sala colorida, com afrescos de todo o tipo nas paredes que lembravam o seu Jardim, mas repleto de ninfas, cupidos e deuses gregos. O cômodo estava cheio de brinquedos. Atravessou a sala e chegou a uma passagem em forma de arco, coberta por uma cortina vermelha. A. atravessou a tal cortina e deu num quarto, onde vários brinquedos (incluindo Blanche) tentavam animar uma bela moça, vestida de luto e chorando desesperadamente sentada em uma bela cama vermelha. Era branca como um cadáver – aliás, era um cadáver de fato. Aquela era M., a garota que morreu ao cair da sacada no ano passado. M. havia se tornado um belo zumbi.

- Oh... – disse M. ao perceber A. em seu quarto – Não sabia que esperávamos visitas. Lamento por isso, sou uma garota muito sentimental... – secou o rosto com um delicado lenço de seda – Eu sou M., e você é? (...) Prazer em conhecê-la, A. Sinto muito, gostaria de brincar com você, mas no momento estou muito triste, com saudades da vida... Do sol, do calor, do gosto do chocolate e do cheiro dos meus perfumes. Vou voltar ao meu caixão dormir um pouco, mas por que não fica para o chá? Tenho certeza que será servido em breve.

A. não sabia o que responder. Por sorte sua conversa foi interrompida por um belo homem que adentrou o quarto às pressas. Tinha longos cabelos louros e uma capa colorida. Aquele era o mago Pierot, criador de brinquedos animados. Era mais jovem e belo do que A. imaginava. Dava pra entender porque tinha tantas namoradas.

- Minha querida, preciso me apressar: encontrei-a! Isso mesmo, a estamos seguindo no presente momento e... – o mago percebe A. – E você quem é? Bem, isso não é tão importante no momento. Sabe atirar?

Aquilo foi muita informação para a pobre A. que não pode dizer nada.

- Bem, para tudo existe uma primeira vez, não é? Conto com você, minha cara! – disse o mago dando uma espingarda para A. Era pesada e a garota tinha dificuldades em carregar o objeto.

Correram para a sacada do quarto enquanto M. fugia da luz do sol que entrava pela janela. Entre as nuvens, um ponto brilhante como uma estrela se destacava. Era a Fênix, um pássaro colorido que traçava um arco-íris no céu. Um dos 102 deuses do panteão do Mundo 2, que estava sempre voando na parte mais alta do céu. O mago puxou uma besta de sua capa e se pôs a atirar no belo pássaro. As cinzas daquele deus podiam reviver qualquer pessoa. Seria aquilo tudo por M.?

A Fênix falou, com uma voz pura e delicada como um cristal:

- Afastem-se, mortais. Não sabem o que estão fazendo. Se me enjaularem, estarão cometendo um terrível pecado. Serão gravemente punidos.

O mago riu e falou:

- Receio que nosso objetivo não seja capturá-la, bela ave. Queremos matá-la. E quanto às punições, não há deus esperto o bastante para me pegar! – e virou-se para A. – Vamos lá, minha jovem, atire! É nossa única chance.

A. se apressou em armar a pesadíssima espingarda. A Fênix voltou a se pronunciar com aquela voz gentil de xilofone:

- Pobres mortais... Encerrados nessa condição patética. Jamais superaram a morte. Jamais atravessaram os deuses. Jamais alcançaram o céu. É seu destino. Um destino triste...

A. atirou. Não viu se acertou ou errou. O baque foi tão bruto que a jogou para trás e a fez cair da sacada. Caiu por muito tempo. O mundo, lá embaixo, parecia cada vez maior. Seus cabelos voavam com violência. Com certeza morreria ao bater no chão. Seria nossa heroina a mais nova defunta daquele mago? Por sorte, A. despertou antes de acertar o chão.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Crônicas do Mundo 2

~ O Cavaleiro Negro ~

E. e A. encontraram um castelo abandonado em meio ao Jardim. Era um lugar grande e bonito. Decidiram que seriam rei e rainha daquelas ruínas. Esteve tudo bem até A. ser capturada pelo Cavaleiro Negro. Este infeliz era o nêmesis do Príncipe Encantado e gostava, basicamente, de raptar princesas indefesas. Morava num castelo negro cercado por morcegos, lobos, cobras e todo o tipo de bicho assustador.

Aquele castelo era grande demais para E. brincar sozinho. Nosso herói pediu um sabre de luz emprestado a Maitomashin e seguiu para o tal castelo maligno, partindo em várias partes todo e qualquer bicho que entrasse em seu caminho, fazendo ZUM e ZUUM.

O castelo estava cercado por ervas venenosas e plantas gigantes cheias de espinhos. Com seu sabre de luz, E. fez seu caminho por todas as adversidades. Enfim chegou ao salão superior, onde o Cavaleiro Negro tocava um gigantesco órgão tubular de sete andares de tecla, cada andar com umas nove oitavas e mais uma terça. Tocava a Tocata e Fuga em ré menor do Bach. O vilão se levantou, jogou sua capa e disse com uma voz grossa e metálica, abafada pelo elmo fechado:

- E... Venha para o lado negro da força.

Aquilo não fazia sentido nenhum então E. decidiu simplesmente decepar o inimigo sem fazer perguntas. Era uma tarefa dura pois o Cavaleiro Negro tinha um sabre de luz como o de nosso herói. A batalha seguia acirrada. O vilão dizia:

- Sua falta de fé é perturbadora.

E. estava cheio daquele discurso sem sentido e simplesmente decapitou seu rival com um golpe certeiro. Uma porta se abriu para a torre mais alta daquele castelo. Após subir escadas por um bom tempo, E. chegou até seu destino.

Era um quarto elegante num estilo vitoriano com a predominância das cores vermelho e dourado. A. estava mudada. Usava um vestido preto com muitas rendas e detalhes. Usava maquiagens pesadas, deitada em um divã enquanto era servida de vinho e frutas por suas servas. A. estava bela? Estava mais feminina que nunca. A. disse a E:

- Você é realmente irritante. Não vê que ninguém precisa de você aqui? O Cavaleiro Negro é um homem de classe - gentil, elegante, inteligente, refinado e, acima de tudo, maduro. Um homem maduro, ao contrário de você. Não vê que estou cansada das suas brincadeiras? Você perdeu a hora de crescer, E. Nem ao menos sabe o que é o amor. Nem ao menos conhece os prazeres do vinho... Da beleza... Da servidão... Do poder... Do ouro e das jóias...Os prazeres da carne. Tudo em que você pensa é em suas brincadeiras estúpidas. Deixe-me aqui e volte para seu jardim idiota. Seja criança para sempre e morra na ignorância.

Aquela não era a A. que nosso herói conhecia. O que havia acontecido desde o Dia dos Namorados? E. revelou que não havia mais Cavaleiro Negro. Que o havia decapitado. A. ficou desesperada. Chorava como uma criança, manchando o rosto com a maquiagem e implorando por seu amante, pai, protetor... Homem maduro. E. achava aquela choração toda uma chatice. Teve tanta raiva que, com apenas um olhar furioso, tratou de queimar as madeixas encaracoladas de A. Agora sim aquela menina idiota teria porque chorar. Não era ela quem falava em poder? Pois bem, os olhos de E. queimarão os falsos e mentirosos. Aquilo era bom...

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Crônicas do Mundo 2

~ O Tiranossauro ~

E. odiava a escola. Não era por menos – a escola era uma droga. Odiava todo mundo na escola com exceção de A., que não lhe dava mais atenção. Havia um cara... O nome dele era W. Humilhava E. na frente de todos, xingando e fazendo chacotas com sua aparência física e seu comportamento. E. tentou revidar mas era inútil. W. deu de presente a E. um nariz que sangrava.

E. gostava de ficar em casa, desenhando, jogando videogame e brincando sozinho com seus bonecos. Seu favorito era Rex, o tiranossauro de borracha. Era o mais poderoso entre seus brinquedos, e sua boca grande podia engolir a cabeça do Capitão América com uma só bocada.

E. levou Rex para a escola esperando disfarçar a solidão. Além da bronca que levou da professora, também ganhou vaias, chacotas horríveis do pessoal do fundo da sala, comentários jocosos e risos não tão bem escondidos por aquelas meninas nojentas. No recreio, W. tomou Rex de E. e arremessou o brinquedo para o outro lado do muro, num terreno baldio. E. pediu à diretora para sair em busca de seu brinquedo. Levou outra bronca.

Em meio ao terreno, E. encontrou Rex são e salvo, caminhando pelo mato. Perguntou ao dinossauro se não havia se machucado. Rex respondeu com a voz mais maneira que você pode imaginar:

- Há! Esse W. com certeza sabe falar alto, mas arremessa como uma mocinha. Não se preocupe comigo, meu chapa... Ah, o que é isso amigão? Não chore! Este W. não é de nada. Vamos lá campeão! Está melhor? Ótimo, vamos voltar para a escola. Este W. ainda vai levar o que merece...

Rex não só era maneiro, como também era um dinossauro gentil e amigável. Bem... Não com todo mundo. Depois de algumas semanas assistindo seu melhor amigo E. ser alvo de piadas, ameaças e brincadeiras de mau gosto, Rex começou a crescer. Andava sozinho pela escola e estava pesado demais para ser arremessado pro outro lado do muro.

Então, um dia, durante o recreio, W. abaixa as calças de E. em frente a toda a escola. Todos riem, e E. sente vergonha, humilhação e raiva... Muita raiva e o dinossauro cresce. Cresce até ter o tamanho de um tiranossauro de verdade. Assim que percebem o perigo, todos tentam fugir, inclusive W., mas o idiota jamais escaparia do terrível Tiranossauro Rex. Com apenas uma bocada, o dinossauro arranca a cabeça de W. Aquela escola idiota era o novo banquete de Rex. E. teve sua vingança.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Crônicas do Mundo 2

~ A Vingança de A. ~

Depois de duas semanas em coma, A. retornou ao Mundo 2. E. estava feliz com o retorno de A, mas a garota não era mais a mesma. Muito havia ficado preso no espelho. E. não se aproximou – não por A, mas por quem a acompanhava. A. retornou acompanhada de um gigante de seis braços e três olhos. Era um deus terrível. A. levou o deus até a casa, apontou a entrada para o forro e disse:

- É aqui que se esconde o monstro, Senhor Shiva. Por favor, faça-o sofrer e traga-me a cabeça do infeliz.

O gigante respondeu com voz de trovão:

- Receio que isto não seja possível, mortal. Se a Shákti de Brahma estiver mesmo prisioneira deste monstro, terei que reduzi-lo a cinzas.

O Mahadeva subiu até o forro e E. pode ouvir os gritos de dor e desespero do Bicho-Papão. A. teve sua vingança. A. sempre tem tudo o que quer.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Crônicas do Mundo 2

~ O Devorador de Crianças ~

Assim que E. chegou, A. mostrou ao amigo os restos mortais do coelhinho. Aquele mesmo com que E. a havia presenteado. O Bicho-Papão havia comido o coitadinho e deixado apenas os ossos e uns restos de vísceras. A. queria vingança e a teria com a ajuda de E.

Assim que todos foram dormir, A. e E. tomaram a escada dos pintores mais uma vez e subiram para o forro (aquele mesmo onde encontraram o Papai-Noel). E. levava seu taco de beisebol e uma lanterna enquanto A. levava uma faca da cozinha. A garota estava determinada em fazer o maldito Bicho-Papão sangrar.

De fato, o monstro se escondia lá, devorando animaizinhos pequenos que caçava pelas redondezas, como gatinhos, passarinhos e cachorrinhos. O Bicho era realmente grande – dava uns dois adultos – e tinha uma boca enorme. Assim que viu as crianças, riu fazendo uns barulhos engraçados e falou:

- BlaH BOuoO Goy bLLARg YuoOoaA HuuoOrR BllEEArgH.*

Nossos heróis não sabiam falar a língua dos monstros, então não puderam entender nada do que o Bicho disse. Depois do discurso, o monstro tirou da boca uma pequena caixinha de música, deu corda e a soltou no chão. Uma musiquinha de ninar saia da caixa. O Bicho-Papão disse:

- BlEEeeE BuuEOeoeO GooOBLIa WuuUu BlaH wBoooBb.*

E antes que pudessem agir, nossos heróis sentiram um sono profundo. Não resistiram ao peso das pálpebras e se entregaram à magia daquela caixinha de música. Quando acordou, E. percebeu que havia algo errado. Ligou a lanterna, mas que lugar era aquele? Ele e A. estavam juntos, apertados e entalados em algo que parecia ser um buraco fino ou um tubo macio. A. ainda estava sob o feitiço e dormia profundamente, lambuzada em um liquido estranho. Era o que E. temia: estavam no esôfago do Bicho-Papão, e sabia que, se não saíssem de lá logo, cairiam no estômago onde seriam digeridos. Tentou se debater, mas aquele lugar era apertado e mal deixava nosso herói se mexer. Tentou despertar A., mas era inútil. Depois de muito esforço por parte de E., o Bicho sentiu a comida incomodar e uma voz se propagou como se viesse de todos os lugares:

- WaahhrG GroOO BllaAAhrg GrRRooO ssSSSWOorp PooOObB.*

De repente, o esôfago começou a fazer contrações que empurravam nossos heróis para baixo. E. tentou se segurar mas as paredes eram lisas e escorregadias. Em pouco tempo, caíram no estômago. Os sucos digestivos começaram a vazar de todos os lados. Era um liquido quente que queimava a pele de E. O menino resolveu forçar seu retorno, mais uma vez. Outra viagem ruim ao Mundo 2.

E. logo perceberia que não devia ter deixado A. inconsciente numa situação como aquela, na qual deviam se desconectar o mais cedo possível. O Mundo 2 era belo, mas cruel.
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* Olhem só o que o Pequeno Príncipe acaba de encontrar: crianças belas e rosadas! Há quanto tempo este Príncipe não come crianças de verdade? Parecem deliciosas!

* Querida Sarasvati, prisioneira na caixa deste Príncipe. Cante para estas crianças más para que durmam e sejam boazinhas durante o desjejum deste Príncipe.

* Crianças más! Durmam e esperem pela digestão deste Príncipe. Sejam crianças obedientes.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Oceano

http://www.youtube.com/watch?v=FHgyZFiUPeM

O fim do mundo, cap. 17

Era domingo. A gente faria uma reunião no galpão do velho McCain. Deixa eu te explicar como ficou essa história: após o discurso da Emily, o velho maluco resolveu nos ajudar, mas não nos emprestou a casa. Atrás do terreno havia um galpão velho que era usado pra estocar móveis antigos, e o velho decidiu que seria melhor que fizéssemos nossa base lá. Foi até melhor, pois o lugar era mais isolado. Foi um dia bem estranho. Depois de tudo o velho fez até biscoitos pra gente.
O fato é que, enquanto eu, Emily e Claire íamos para o Q.G. (era assim que Emily chamava o galpão do velho McCain), passamos por uma quadra velha de basquete, coberta por uma cerca. No meio desta quadra estavam Ben e Johnny praticando as tais aulas de autodefesa. Paramos para assistir. As garotasse encostaram à grade. Preferi manter uma certa distância, mas observei tudo. Torcia para que acabasse numa briga emocionante.
- Será que vai dar tudo certo? – perguntou Claire.
- Não sei – respondeu Emily.
- Digo, não há perigo de os garotos se machucarem?
- Não sei.
- Ah Claire, não esquenta com isso. É isso que eles querem fazer não é? Deixe que se machuquem – disse eu. De fato, eu queria mais é que os dois saíssem no braço. Seria algo bastante emocionante praquela tarde tediosa de domingo.
As garotas estavam de mãos dadas. Claire fazia questão de manter uma proximidade de nós, os demais Escolhidos, e isso incluía uma proximidade física, mas com a Emily ela investia pesado no toque. Estavam sempre de mãos dadas ou braços enganchados ou abraçando-se. A Emily era sempre indiferente, mas Claire não parecia se importar muito com isso. Ela segurava a mão de Emily com uma das suas e com a outra segurava a grade. Parecia mesmo preocupada com a situação dos idiotas.
- Ok garoto, vamos voltar para o básico. Por que é que a humanidade briga entre si desde o começo dos tempos? – perguntou Johnny com uma mão na cintura e a outra segurando sua jaqueta de couro no ombro.
- Sei lá. O que isso tem a ver com autodefesa? – Pow! O gordo levou outro daqueles tapas na cabeça.
- Ai! Qual é a tua? – reclamou Ben.
- Droga carinha, já te disse que isso é pra te dar inspiração! Escuta: a gente briga pra aliviar a tensão. Isso mesmo, não há nada que te deixe mais relaxado que uma boa briga. E tem mais, quando digo brigar não quero dizer bater. Digo apenas brigar, entende? Na maioria das vezes, levar uma bela surra te deixa bem mais relaxado que bater em alguém.
Ben encarou o mestre de forma curiosa.
- Se apanhar é melhor que surrar, por que vc ta me ensinando essa droga de autodefesa? – Pow! O gordo levou outro tapa na cabeça. Não entendi por que. O gordo tava certo. Aquilo não fazia sentido nenhum e eu teria perguntado a mesma coisa.
- Não garoto! Não pense assim. Droga, vc é lento... Não entende? Vc não pode passar o resto da vida evitando as brigas, muito menos se entregando a qualquer valentão que queira te bater. O esquema é revidar, mesmo que a briga esteja perdida. Mesmo que vc não tenha a mínima chance de vencer. Quando vc sabe que apanhar, muitas vezes, é melhor que bater, vc sente que não tem nada a perder e ganha confiança. Tendo confiança vc nem ao menos precisa brigar, basta demonstrar coragem e ameaçar os desgraçados. Acha mesmo que eu venceria aquela briga com Budd e sua turma? É muito difícil ganhar uma briga de três contra um, mas o segredo está em não deixar que teus adversários saibam que vc sabe disso, entende?
Ben escutava com atenção. Nesse momento o conversível de Ray estaciona ao nosso lado. O cara tava com a Ashley. O casal perfeito desembarcou e foi ter com a gente.
- E ai gente, o que é que ta rolando? – perguntou Ray sorridente.
- Ah... O Johnny ta dando umas aulas de autodefesa pro Ben, mas até agora só tão conversando. Ta chato pra caramba – respondi.
- É mesmo? Puxa, o Johnny preparou até uma aula teórica! Essa eu não posso perder – e Ray encostou-se à grade, ao lado das garotas, com uma expressão de curiosidade e animação. Ashley permaneceu ao meu lado, de braços cruzados e uma expressão de desprezo. Qual é o tipo de cara que se anima com aulas teóricas de autodefesa? Vai saber. Mantive a mesma distância dos primeiros momentos e voltei a assistir à aula.
- Mas e se a ameaça não funcionar? – perguntou Ben.
- Aí é que ta o segredo! Se vc não se importar em apanhar, vc também não terá nada a perder. E como eu disse, levar uma surra e ficar com o corpo dolorido muitas vezes é bem mais relaxante que bater em alguém.
O gordo pensou.
- Não acredito nisso. Já apanhei varias vezes e nenhuma delas foi legal.
- É porque vc ainda tem medo da dor. Lembre-se sempre que a dor é sua amiga. Mesmo que vc bata nos caras, teus punhos sempre ficaram doendo por causa do impacto com as caras feias dos imbecis. A dor sempre estará ao teu lado. O importante é saber lidar com ela, e saber que ela, unida à força, é que fazem um bom soco ou um bom pontapé.
Ben levantou uma sobrancelha e ficou com cara de “o quê?”. Johnny suspirou, jogou sua jaqueta, levantou o braço com a mão aberta e disse:
- Melhor passar para as aulas práticas. O negócio funcionará da seguinte maneira: vc acerta um soco na minha mão, com toda a força, depois eu acerto um na tua. A gente vai repetir isso até vc superar o medo da dor.
- Pare de falar isso. Eu não tenho medo da dor!
- Então o que te segura na hora de revidar os socos de Budd Tysel?
O gordo baixou a cabeça. Falou do jeito entrecortado de sempre:
- Não é da tua conta.
Johnny suspira mais uma vez.
- Vai logo carinha. Acerta o soco.
Pow. Ben acertou um soco de leve que mal estalou. Johnny apenas fez um “tsc tsc”.
- Agora é minha vez. Abre tua mão.
- Ei, eu não quero! A idéia foi tua.
- Deixa de ser fresco e abre a mão! Depois que perceber que eu não to pra brincadeira, aposto que se sentirá muito mais a vontade pra me bater.
E Ben levou o soco. POW! O gordo se apressou em gemer e chacoalhar a mão.
- Ai! O que deu em vc?
- Não esquenta garoto. A mão com que vc bate é a outra. Vai lá, agora desconta toda a dor que eu te fiz passar nessa palma aqui – disse Johnny levantando a mão.
- Droga, eu não quero. Me deixe em paz.
- Vamos! Eu não acabei de te acertar um soco? É teu direito. Vai lá, me acerta. Qual é, ainda com medo da dor?
O gordo bufou. Parecia bastante revoltado com essa história.
- Já disse que não tenho medo da dor! Eu só... Eu só não quero machucar ninguém.
Silêncio. Johnny coçou a nuca, suspirou mais uma vez e disse:
- Olha carinha, eu entendo que não goste de machucar as pessoas, mas tem vezes que é preciso escolher quem é que vai se machucar entende? Serão os idiotas que machucarão vc ou será vc que machucará os idiotas? O problema, garoto, é que eu nunca conheci um cara com menos amor próprio que vc. Sabe do que vc precisa? Encontrar alguém por quem lutar.
Ben encarou o mestre com cara de dúvida. Johnny continuou:
- Aposto que vc já se apaixonou por uma garota né? Todo mundo se apaixona uma hora ou outra. Pense que eu sou Budd Tysel e que estou fazendo a tua garota chorar. Consegue visualizar a cena?
Nessa hora Ben olhou para nossa direção. Parece olhar fixamente para um de nós. Será que a paixão dele era uma das garotas? Só sei que, por um momento, tive a impressão que o cara olhou pra mim. Sai azar!
- Vai Ben, isso mesmo. O safado do Budd Tysel ta magoando a tua garota. Ela nunca mais vai sorrir do mesmo jeito que sorria pra vc. E aí, vai deixar barato? Olha o rosto de Budd, aqui, bem na palma de minha mão. Ta vendo? – insinuava Johnny.
O cara sabia mesmo criar o ambiente certo pra despertar a ira contida em potencial nos outros. De repente, Ben franziu as sobrancelhas, puxou o braço com violência e POW! Bem no meio da palma de Johnny. Além do barulho do soco, ouvimos outro barulho característico. Aquilo não podia dar certo. Era um CLACK! Nessa hora, Johnny segura o pulso acertado com a mão, põe entre as pernas, se joga no chão e começa a se contrair e a se debater gritando:
- Ai! Seu safado! O que deu em vc?! Vc quebrou meu pulso! Seu babaca! Ai, ai, ai, filho da mãe... Nunca senti uma dor assim...
Esta sim foi uma situação idiota. O gordo apenas observava Johnny rolar no chão com uma cara de “o que foi que eu fiz?”. Claire puxou Emily para dentro da quadra e foi socorrer o infeliz. Olhei pro Ray, esperando sua reação ao acontecimento. O cara só sorria boquiaberto de um jeito idiota e dizia:
- O Johnny é um gênio!
Emily estava satisfeita, pois descobriu que a habilidade especial do Ben era a super-força. Por que o idiota nunca revelou a droga do poder quando a gente realmente precisou dele? Falando nisso, assim que vi Johnny se debatendo de dor, lembrei de algo antigo da minha infância. Algo de quando eu costumava ir na casa do Ben. Como já falei, sempre rolava umas festinhas horríveis naquela casa. Lembro de um bando de crianças fazendo chacotas com um Ben gorducho, baixinho e com um chapeuzinho de festa ridículo. Se é que eu podia lembrar bem, o gordo era uma máquina assassina e arrebentava as caras de todo mundo na festa. Não sobrava ninguém pra contar história. Foi assim até que um menino foi pro hospital, e uma mãe chorava desesperada, gritando pra Senhora Watschosk: “seu filho é um monstro!”. Que lembrança mais aleatória! É aquele tipo de coisa da infância que fica meio esquecida em alguma parte qualquer do cérebro.
Após o ocorrido, carregamos Johnny até o carro de Ray e o levamos ao hospital. Não chegou mesmo a quebrar o pulso, mas o cara teria que usar gesso por uns dias. Depois de tudo Ray levou cada um de nós para suas respectivas casas e a reunião no McCain foi abortada. O problema (que percebemos só no outro dia) é que ninguém lembrou de avisar o cara novo, o Dwight, sobre o cancelamento da reunião, e o bobalhão ficou esperando na frente da casa do velho por horas. Não seria a ultima vez que faríamos algo assim pro coitado do Dwight.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Crônicas do Mundo 2

~ O Espelho ~

Após escrever todos os seus segredos, A. guardou seu diário na gaveta. Olhou-se no espelho e se pôs a pensar nas coisas que havia acabado de escrever. Coisas secretas sobre E., o novo namorado de sua melhor amiga J. Procurando entendê-las, A. encarava seu reflexo no espelho. Tocou o vidro gelado com a mão direita, e o reflexo sorriu, apertou a mão de A. e a puxou para dentro do espelho.

A. estava, agora, em um labirinto de espelhos. Entre muitas imagens de si mesma, viu aquele reflexo – aquela outra A. que a trouxe para aquele lugar – com o diário nas mãos. Em que momento poderia, ela, ter tirado aquele caderno da gaveta? A outra A. disse:

- Eu sei seus segredos. Vou contá-los todos a J. e E.

A notícia deixou A. desesperada. Correu atrás da outra A., mas esta se confundia com os vários outros reflexos que se projetavam nas paredes de cada novo corredor daquele labirinto. A. correu, correu, correu, até que voltou para o início. Do outro lado do espelho, a garota podia ver seu quarto, e a outra A. com o diário em mãos, que ria histericamente e dizia:

- Olhe só para você. É patética. Estou cansada de ser o seu reflexo. A partir de hoje eu serei a verdadeira A. e você será o meu reflexo. Ao contrário de você, eu posso conquistar o amor de E. Agora espere aqui e não se preocupe, quando voltar, contarei todos os meus segredos a você, exatamente como costumava fazer comigo. Ah! Lembre-se: quando eu sorrir, você deve sorrir também. É para isso que servem os reflexos, não é?

Agora a garota via apenas seu quarto além do vidro frio. A outra A. fora em busca do amor de E. A pobre menina tentava quebrar o vidro, mas era impossível. Havia se tornado um mero reflexo. A. passaria o resto da vida naquele labirinto, cercada de imagens de si mesma.

Quando despertou, A. percebeu que não estava sozinha. Nunca esteve. Havia outra naquele corpo.