segunda-feira, 28 de março de 2011

Paraíso

Despertei. Levantei a cabeça. Só então percebi onde estava.

Era uma sala de aula. Vazia. Eu tava lá dormindo, com a cabeça deitada nos braços cruzados sobre a carteira. A aula já devia ter acabado há um bom tempo. O que eu tava fazendo ali, até uma hora dessas?

Sai da sala. Já é tarde, eu pensei.

A escola inteira tava completamente vazia. As portas abertas. O ginásio. Não havia alunos nem professores. O portão tava aberto.

Sai devagar. Não havia ninguém na rua, mas a minha direita tinha um ponto de ônibus onde esperava uma menina de uniforme parecido com o meu. Ela tinha uma mochila nas costas, e tava lendo um livro, em pé, esperando o ônibus. Caminhei lentamente, quase querendo adiar a situação, até aquele ponto. Pensei em perguntar alguma coisa, mas ela parecia tão concentrada naquele livro que, no fim das contas, só passei reto pelo ponto de ônibus, olhando pra baixo. Ela nem me percebeu.

Continuei caminhando, já tava quase na esquina e não tinha a mínima idéia de para onde ir. Antes de atravessar a rua escutei um barulho atrás de mim. Olhei mais uma vez pra garota. Haviam chegado mais três caras naquele ponto. Estavam de bicicleta e não usavam uniforme do nosso colégio. Cercaram a garota. Ouvi risos. A garota tentou guardar seu livro e sair dali.

- Qual é a pressa, menina? Que é que você ta lendo ai? – falou o idiota.

Ela tentou fugir, mas foi cercada pelos outros patifes.

- Calma ai, gatinha. Tem um dinheiro ai? Sabe aquela brincadeira? É pagar ou dar um beijinho, o que acha? - falou o segundo, segurando o braço dela.

- Me deixe em paz, seu retardado - falou a garota, corajosa.

Eles riram.

- Oh, que medo! Ela tá nervosinha!

O primeiro idiota, num movimento rápido, tomou o livro da mão dela.

- Me devolve isso, seu idiota!

- O que é isso, um livro? Você é estudiosa então? Parece chato... Escuta, troco esse livro por um beijinho, feito?

Cansei de ficar lá, só assistindo aquela palhaçada. Resolvi voltar e interferir.

- Deixa ela em paz – falei, chegando sorrateiramente.

Não sentia medo. Nem um pouco. Só sentia raiva daquele paspalho. Os três me encararam curiosamente.

E quem é você, idiota? Namoradinho dela? É melhor cair fora antes que a gente arrebente você também.

Decidi que tinha que tentar. Antes que o idiota pudesse continuar falando baboseira, acertei um soco no olho dele. Minha mão explodiu na cara no infeliz, que caiu nocauteado. Nunca me senti tão forte. Tão poderoso. Desde o começo eu sabia que podia fazer aquilo. Arrebentar aquele idiota. Eu podia arrebentar os três juntos e ao mesmo tempo. Eu sabia disso.

Os outros dois pularam em mim. Levei um soco na cara, uns chutes mal dados nas pernas e uns socos na costela, mas a dor apenas aumentava minha força. Comecei a atacar. Meus golpes eram certeiros. Eles perceberam que não tavam ganhando briga nenhuma, pois eu nem sentia seus golpes. Resolveram pegar o cara caído e sair fora, anunciando aos berros que aquilo não ia ficar assim. Que eles iam me pegar uma hora ou outra e blá blá blá...

A garota tinha caído sentada ao lado, na grama. Ficou lá, assistindo a tudo, me olhando com estupefação. Fui até ela e ofereci minha mão.

- Você tá bem? – perguntei.

Ela se levantou, bateu a poeira da saia e sorriu pra mim.

- Puxa, isso foi muito legal. Obrigada!

Sorri também. Ela abriu um bolso da mochila, tirou um lenço branco e estendeu para miim.

- Tua boca tá sangrando. Eu sinto muito.

Então percebi que minha mão direita, a que eu usei pra distribuir socos, tava dormente. Meu corpo inteiro tava dolorido e, ao por a mão na boca, vi o vermelho do sangue. Nada daquilo me assustou. Muito pelo contrário, me deixou muito feliz. Aceitei o lenço e ri de mim mesmo. Eu me sentia tão especial após fazer aquilo que não saberia explicar.

- Não sinta, eu estou ótimo. Sério mesmo, nunca tive tão bem em toda a minha vida!

Ela riu de mim

- Você é estranho. Acho isso legal.

Eu, estranho? Ela que era, mas pensando bem eu era estranho sim. Tudo aquilo era estranho, de um jeito especial.

- Que livro é este que você tava lendo?

- Ah, – ela me mostrou a capa – eu peguei esse livro na biblioteca municipal. É sobre magia e esoterismo. Eu preciso renovar ele hoje, por isso to esperando o ônibus.

O livro era antigo, com uma capa grossa, verde, e uns escritos em dourado. As paginas eram amareladas. Parecia bem legal.

- Parece bem legal.

- E é! Você vai fazer alguma coisa agora? Se não, quer ir comigo até a biblioteca renovar esse livro?

De repente, toda a sensação de não ter pra onde ir sumiu.

- Ah, pode ser.

- Legal! É só esperar o ônibus então.

E a gente ficou lá, um ao lado do outro, olhando pra frente. Esperando o ônibus chegar, em silêncio, mas sem desconforto. Uns vinte segundos depois ela lembrou de perguntar:

- Qual é seu nome?

Pensei.

- Gray.

- É um nome bonito.

- Que nada. É só um apelido.

Ela riu. Foi meio estúpido, mas ela não parecia ligar

- Meu nome é Liz.

O ônibus chegou. A porta se abriu e nós dois subimos. O motorista era um homem sério, de cap ao estilo policial. Não parecia dar a mínima pra gente. A Liz foi entrando sem cerimônias.

- Espera!

- O que?

- A gente não precisa pagar pra entrar no ônibus? Ou mostrar uma carteirinha, um passe, sei lá?

Ela sorriu.

- Não se preocupe. Estudantes têm passe livre.

- Mas como ele sabe que somos estudantes?

Ela só puxou minha camiseta. O brasão da escola. É claro. Estávamos de uniforme.

O ônibus estava tão vazio quanto a escola ou a rua, com a exceção de um sujeito esparramado nos bancos do fundo, com um casacão enorme e uma toca enterrada na cabeça. Devia estar dormindo.

Sentamos em uma poltrona no meio do ônibus. Conversamos um pouco. Ela me falou sobre o livro que estava lendo. Parecia bem animada com aquela coisa. Foi tão rápido. O ônibus parou.

- É aqui que a gente desce.

Descemos no ponto logo em frente ao prédio branco, grande e imponente. Acima das portas estava escrito com letras grandes numa fonte elegante “Biblioteca Municipal”. Entramos. O lugar também estava vazio. O silencio era intenso. Ouvíamos apenas nossos passos, ecoando como trovões pelo salão de recepção. Atrás do balcão estava uma mulher que devia ter uns quarenta e poucos anos, mas alta e elegante, esguia, com roupas chiques, o cabelo preso em coque e um par de óculos levemente repousados sobre a ponta do nariz. A bibliotecária nos aguardava com um sorriso sereno.

- Oi! Eu queria renovar este livro.

Liz estendeu o livro à bibliotecária, que ajeitou os óculos ao ler o título.

- Ah... “Crônicas do Mundo 2”. Uma boa escolha, mas é um livro pesado para alguém de sua idade... Não! Pensando bem, é perfeito para alguém como você.

A mulher passou o leitor de código de barras no livro. Digitou algo no computador e carimbou a nova data de devolução.

- Pronto. Boa leitura.

- Obrigada. Tchau!

Quando saímos o horizonte estava tingido de sangue. O crepúsculo.

- Está anoitecendo... É melhor ir pra casa.

Pegamos o ônibus mais uma vez. Foi a mesma coisa. O mesmo motorista absolutamente indiferente à gente. Sentamos no mesmo banco. Falamos pouco, mas eu estava feliz em estar ao lado dela.

Mais uma vez, foi rápido demais.

- Ah, meu ponto é aqui - ela guardou o livro, ajeitou a mochila nas costas e se levantou – Foi legal te conhecer, Aaron. Te vejo na escola, e obrigada mais uma vez.

Um beijo no rosto e eu a vi descendo as escadas. O ônibus voltou a se mover. Ela saiu do meu campo de visão.

Era noite. Pela janela do ônibus, os postes passavam. Os semáforos. Me senti só, mais uma vez. Não sabia qual era meu ponto. Não sabia onde descer. Encostei a cabeça no vidro e fiquei lá por um tempo, vendo a cidade passar.

- Não sabe pra onde ir, não é?

Me virei. No banco de trás, aquele cara. O gorro enterrada na cabeça. A jaquetona desajeitada. O sujeito continuou.

- Não esquenta. Foi a mesma coisa comigo. Entrei nesse ônibus sem saber o ponto em que eu queria descer. Eu sei como você se sente. Daí você faz isso. Você encosta a cabeça no vidro e fica admirado com as luzes que passam. Uma hora a solidão passa e tudo que resta é a calma. Então você não sente pressa. Sente que ficar aqui, nesse onibus, vendo a cidade passar, é o melhor que você tem a fazer.

O sujeito era mesmo do tipo falador, mas ele tava certo.

- E o que você faz então? Perguntei

- Eu? Nada. Eu durmo. Gosto de dormir. Gosto de dormir em movimento.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Super Adventure - Prelúdio

Os pais do pequeno Pedro, de dez anos, tinham uma viagem muito importante a fazer, então o deixaram com seus avós que moravam no interior. Era um sítio pequeno, com algumas poucas galinhas, duas vacas e um cavalo preguiçoso chamado Bartolomeu. O menino tinha pouco a fazer naquele local desolado. Passava suas tardes assistindo os poucos canais chatos que passavam na televisão da sala de estar. A casa toda tinha cheiro de velhice, uma mistura de mofo com cheiro de sabão. Havia moscas por toda a parte. Pedro estava convencido que aquele seria um fim de semana lento e tedioso.

Não o deixavam se aventurar muito além de onde se podia ver da janela, então o garoto decidiu explorar o casarão. Gostava de lugares antigos, apesar de tudo. Gostava de vasculhar cômodos pouco utilizados, como depósitos e porões. Tinha a sensação de adentrar um santuário abandonado ao subir ao sótão, lotado de caixas repletas de velharias, amontoadas umas sobre as outras. Mexeu em tudo até encontrar algo que lhe chamasse a atenção, o que não demorou tanto: em meio a um monte de álbuns de infância e ferramentas, um console de videogame antigo. Não parecia com nada que conhecesse. Era demasiado grande e pesado, assim como os controles. Aquilo não podia ser nem o mais antigo entre os Nintendos, na verdade, parecia até mais antigo que o Atari. Mais antigo até que aqueles que vinham com Pong na memória e tinha os controles direto no console, mas tinha uma entrada grande para cartucho. Vasculhou mais, caixa por caixa, até encontrar um único cartucho robusto, com símbolos estranhos e números desenhados no adesivo. A descoberta reanimou o desolado menino que já havia se conformado com a morte por tédio excessivo. Aquele jogo antigo devia ser uma droga, mas era, com certeza, melhor que o canal do boi e o do mercado de pulgas.

A velhinha estava lá fora cuidando da hortinha e o velho havia subido à cidade de caminhonete, mas Pedro era esperto e sabia se virar. Pegou a pequena televisão do quarto dos avós e a levou ao sótão, onde havia uma tomada 110. Ligou a T.V. e, em seguida, plugou os cabos de áudio e vídeo e a fonte do misterioso videogame. Deu certo! Bastava encaixar o cartucho e uma aventura, por mais modesta que fosse, estaria confirmada. Desapontamento. Não funcionou de primeira, mas o menino lembrou dos antigos falando saudosamente dos tempos em que se assoprava a “fita”. Puxou a maior quantidade de ar que seu pulmão agüentava e soprou com força. Pó e pedaços de uma espécie de lã voaram para todos os lados. Expectativa. O “click” do cartucho encaixando na entrada correta. Deu certo!

Deu-se início a musica chiptune. Um bando de símbolos esotéricos apareceu na tela. O menino não entendia nada até o momento em que, de repente, a tela se escureceu e surgiu um diálogo em letras brancas em português. O jogo era nacional? Quem diria.

“ Bem vindo ao Super Adventure! Antes do Herói prosseguir, um breve questionário deve ser respondido. Seja sincero. Não há nada a temer.”

Deu-se, então, início a um interminável repertório de perguntas inúteis, desde “qual a sua cor favorita?” e “quantos anos você tem?” até “ se você encontrar uma carteira na rua, cheia de dinheiro, tentaria devolve-la ao dono ou ficaria com o dinheiro?” e “você gosta dos seus pais?”. A última questão foi: “Está preparado para uma aventura de verdade?”. Pedro não esperava nada menos que isso para sua vida. Uma nova caixa de diálogo se abriu:

“Parabéns. Você é o escolhido! Agora os portais para do país mágico de Aventura se abrirão para o Herói. Seja corajoso, Pedro, e não chore.”

O jogo o chamou de Pedro? Mas em momento algum foi requisitado o nome do jogador. Estranho. Deu-se, então, uma animação introdutória à aventura. Basicamente o herói Pedro havia sido escolhido para resgatar a princesa de Aventura das garras do terrível Feiticeiro.

O enredo era simples. O garoto estava acostumado a jogar games de ficção cientifica com histórias complexas e diálogos extensos e complicados. Ajeitou-se sobre a almofada em que sentava e preparou-se para a aventura. Então a tela escureceu e a calma música de prelúdio cessou repentinamente. Alguns segundos sem nenhuma resposta. Teria o jogo travado? Assim que Pedro se levantou para resetar, um barulho alto e estridente passou a ser berrado pela televisão, e um monte de cores e formas começou a passar rapidamente pela tela, girando de maneira hipnótica.

Aquela esquisitice já era demais, mas antes que Pedro pudesse desligar o videogame, uma força estranha pareceu-lhe conduzir até a televisão. Na verdade, estava sendo arrastado por uma força gravitacional. Como um vento. Estava sendo dragado para um furacão. A força crescia rapidamente. O menino se agarrou ao que tinha por perto, mas até as caixas, por mais pesadas que fossem, pareciam estar sendo puxadas pelo buraco negro que se abriu na tela. Tentou gritar, pedindo ajuda à avó, mas o barulho emitido pela televisão era tão absurdamente alto que nenhum de seus pedidos por socorro pode ser ouvido. Nem ele próprio podia ouvir seus gritos. Então a força se tornou tanta que Pedro voou em direção à televisão e atravessou a tela. Logo estava atravessando um túnel cilíndrico composto de uma espécie de energia colorida. Antes que pudesse conceber toda aquela situação, o menino chegou a seu destino. O Herói chegou à terra mágica de Aventura.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Um desabafo realmente mediocre e pretencioso

Viver é um negócio ingrato mesmo
Vai você, vivendo uma vida medíocre
E a vida é um constante sofrimento e pouco prazer
Todo o prazer causa dor em proporções geométricas
Prazer 1 = dor 2
Prazer 2 = dor 4
Prazer 3 = dor 8
Prazer 4 = dor 16
Prazer 5 = dor 32
Prazer 6 = dor 64
Você pegou a idéia
Você, então, escolhe viver a base de prazer 1, dor 2
Mas o prazer 1, com o tempo, torna-se invisível, inexprimível, abstrato... uma desculpa feliz e modesta, enquanto a dor 2 é acumulada, potencializada e acaba se tornando absolutamente incomoda e insuportável.
Prazer 1 + prazer 1 = prazer 1
Dor 2 + dor 2 = dor 4
Chega uma hora que o mais triste é tentar não fazer sofrer aqueles cuja felicidade é te manter vivo, mesmo às custas de uma vida medíocre de constante prazer 1, dor 2
E não há mais sequer um estimulo externo que te pareça minimamente atraente
Daí você passa a viver uma vida arrastada pela lateral, de qualquer jeito
E você passa a pensar que morrer não deve ser tão ruim assim
Que tanto faz – não vai mudar muita coisa mesmo
Viver é um negócio muito ingrato mesmo...

terça-feira, 13 de abril de 2010

Crônicas do Mundo 2

~ O Clube ~
E. e K. estavam a caminho de um lugar muito legal. K. estava para apresentar nosso herói ao clube mais maneiro do Mundo 2, que se reunia todos os dias numa casa azul na Floresta das Ilusões. Era um lugar onde apenas meninos podiam entrar. Um clube masculino, onde havia vários bonecos de ação, carrinhos, dinossauros, bicicletas, videogames, mesas de tênis, pebolim e todo o tipo de brinquedo do agrado dos meninos. Também era realizado todo o tipo de esporte, dos mais simples como uma amistosa partida de futebol até os mais radicais. Era um parque dos sonhos para qualquer garoto, repleto de amigos e brincadeiras. Segundo K., neste lugar maravilhoso havia até mesmo uma pista de kart. O pequeno E. estava ansioso.

A casa era realmente grande. Os garotos disseram a senha secreta e passaram pela primeira porta da casa azul. Deram em uma pequena sala com um cabide e uma placa que dizia “Favor, depositar seu casaco e chapéu aqui”. Como E. não usava casaco nem chapéu, passou direto para a segunda sala, onde havia vários tênis e sapatos deixados ao chão, no canto, e uma placa que dizia “Favor, deixar seus calçados aqui”. E. não gostava da idéia de praticar esportes sem seus tênis, mas enfim, regras são regras. A próxima sala era a mais estranha de todas. Havia um balcão no qual um pequeno querubim atendia os meninos que passavam até aquela fase, e uma placa que dizia “Favor, deixar suas demais roupas aqui”. Era uma situação estranha e um pouco desconfortável, mas como K. foi automaticamente se despindo ao entras naquela sala, E. decidiu fazer o mesmo. Regras são regras.

Ao passar pela ultima porta, os meninos adentraram o clube. Era diferente do que E. esperava. Na verdade, aquele lugar parecia mais uma casa de banho, repleta de meninos e querubins que serviam comidas e traziam toalhas aos membros do clube. Estavam presentes todos os garotos do Jardim, como R. L. e O. Os meninos foram recebidos por S., atual presidente do clube. Um cara legal que os levou para conhecer o proprietário daquela casa azul. Foram levados até a diretoria, onde conheceram Eros, um dos 127 deuses do Mundo 2. Era um anjo gigante (Devia ter mais de dois metros), com a pele prateada e brilhante, cabelos dourados e uma voz delicada e melodiosa. A diretoria era um lugar estranho, onde os demais querubins louvavam e dançavam em torno da imagem de um grande falo dourado, símbolo da masculinidade daquele lugar.

E. se sentia desconfortável, mas sabia que logo os jogos e brincadeiras começariam e isso o deixava contente. S. explicou a E. que, antes das brincadeiras começarem, era preciso que membros novos fossem levados à Banheira da Iniciação. Uma banheira mágica onde se podia dormir por horas proporcionadas por uma sensação agradável. A mágica estava em dormir naquelas águas, pois os sonhos que se tinham lá eram sempre de situações radicais. O próprio K. sonhou que pulava de pára-quedas enquanto S. sonhara que estava em um carro de corridas a trezentos quilômetros por hora. Aquilo parecia emocionante, e E. resolveu tentar.

Foi deixado a sós na pequena sala escura onde havia aquela tal banheira. Entrou lentamente e se deitou na água quente e reconfortante para, assim, esperar até que o sono lhe batesse. Não demorou tanto, pois as essências contidas naquela água possuíam um poderoso calmante.

E. dormiu, mas o sonho não foi tão radical quanto esperava. Na verdade, teve um sonho idiota em que A. estava vestida de Hitler, com direito a bigode postiço e tudo, enquanto batia continência para ele. A maior surpresa E. teve ao despertar e descobrir a verdadeira mágica daquela banheira. Sentiu-se estranho, diferente e percebeu que seus cabelos estavam compridos. Primeiramente temeu que tivesse passado anos naquela banheira, mas ao se levantar percebeu a verdadeira mágica. Aquela água havia-lhe mudado o sexo. Agora era uma menina.

E. se desesperou. A primeira coisa em que pensou foi que estaria em maus lençóis se alguém descobrisse uma menina naquele lugar. Os querubins provavelmente o(a) atacariam, pois odiavam meninas. Pensou em sair de fininho sem que ninguém percebesse as mudanças em seu corpo, mas estava nu(a) e suas roupas estavam no balcão, guardadas pelo pessoal da organização.

E. saiu daquela sala tentando ao máximo esconder seu corpo. Sentia vergonha e humilhação. Passou rapidamente pelas outras banheiras de cabeça baixa, ouvindo os risos entrecortados dos demais garotos do Jardim. Pensou que talvez a situação toda pudesse ser um trote feito aos novatos. Todos riam de E. que procurava desesperadamente por K. ou S. para exigir explicações. Enfim encontrou S., que segurava em suas mãos um grandioso buquê de flores e uma caixa de bombom. Que diabos significaria aquilo?

- Olá A. Gostaria de convidá-la para um encontro. Por favor, aceite essas rosas – disse S. entregando as rosas a E.

Então nosso herói (heroína) se olhou pelo espelho que havia sobre o balcão e enfim percebeu que não havia se tornado qualquer menina. Havia se tornado A. Sentiu algo indescritível. Seu coração bateu com tanta violência que o arrebatou de volta ao Mundo 1. O que o Mundo 2 poderia querer lhe dizer, afinal? Após se acomodar em sua maca, E. contemplou aquele belo jardim pela janela de seu quarto e pensou sobre ser A. Concluiu que perdeu sua única chance de entender completamente o que se passava pela cabeça e pelo coração de A.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Crônicas do Mundo 2

~ A Árvore da Vida ~

A. despertou preguiçosa. Não sabia onde estava, mas era um lugar morno e confortável. Algo dava à menina a maior sensação de segurança que já havia sentido. Estava tão escuro que A. mal podia ver sua própria mão em frente aos olhos, aliás, estariam aqueles olhos abertos? Era uma situação misteriosa, mas A. sentia muito sono. Sabe aquela sensação que se tem quando se desperta no inverno pensando que já é hora de levantar, mas, ao olhar o relógio na cabeceira da cama, se descobre felizmente que ainda faltam algumas horas de sono a serem dormidas? Esta sensação boa era o que A. sentia e o que a fazia se aconchegar e continuar a dormir naquele lugar estranho, porém acolhedor.

E assim A. passou, despertando algumas vezes apenas para se virar e se aconchegar para, então, voltar àquele sono tão preguiçoso e agradável. Sentia que havia alguém velando por seu sono. Uma voz delicada e compreensiva que dizia: “Volte a dormir, minha menina, pois ainda não é sua hora”. A. se esqueceu dos prazeres e das dores daquele Jardim. Esqueceu-se, também, de E, J. e todas aquelas pessoas que por hora a machucavam, outras horas lhe davam tanta alegria e prazer. Estava sozinha, hibernando num mundo de carinho e proteção misteriosa.

A. não lembra quanto tempo passou naquele lugar, mas lembra a dor que sentiu ao som da moto serra rasgando a madeira, e da voz desesperada de E. que a chamava. A serra chegava cada vez mais próxima de sua bolha. Enfim a bolsa estourou. E. sabia que aquela atitude era egoísta, mas precisava de A. para desvendar o segredo daquele jardim, o Tesouro Divino do Mundo 2.
E A. foi retirada a força do ventre de carne no cerne da Árvore da Vida. De volta àquele jardim de dor e prazer. De volta ao Mundo 2?

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Crônicas do Mundo 2

~ O Dia dos Namorados ~
Enfim era chegado o Dia dos Namorados. A. estava ansiosa. As crianças que já tinham idade suficiente para se interessar pelo assunto se reuniriam naquele Jardim para celebrar e fazer jogos de amor. Era o primeiro ano de A. Estariam presentes todas as meninas mais moças, como J., B., V. e F. Mais alguns meninos mais maduros como K., R., L. e S. Meninos muito atraentes, principalmente S, mas A. já sabia para quem daria seu primeiro beijo. E. era seu melhor amigo e não era tão feio assim. Na verdade era até bem bonitinho.

As brincadeiras eram todas armadas pelas meninas, que faziam uma reunião da corte feminina com algumas semanas de antecedência e escolhiam com que garoto cada uma ficaria. A prioridade era sempre das meninas mais velhas, então A. foi a ultima a escolher. Por sorte, ninguém escolheu E. e tudo saiu como planejado.

As crianças estavam reunidas próximas à Árvore da Vida, onde seriam feitas as tais brincadeiras de amor. Cúpidos gordinhos e rosados auxiliavam e arbitravam os jogos. Era chegada a vez de A. J. vendou nossa protagonista, que faria um pega-pega às cegas, sozinha contra todos os meninos. O garoto que A. pegasse seria só dela pelo dia inteiro. J. sussurrou ao seu ouvido “Está pronto”. Havia sido combinado que J. daria a E. um guizo para que A. pudesse reconhecer seu amigo pelo som.

Então A. correu ao léu, ouvindo risadinhas ao fundo, procurando distinguir o som do pequeno guizo entre todos os barulhos que ouvia só quando estava privada da visão. Enfim A. pegou o guizo, mas, ao tirar a venda, teve uma terrível decepção. J. a havia enganado, e quem segurava o guizo era ninguém menos que O, o menino gordo e sujo, com chapeuzinho de hélice e cheiro de vômito. A. ficou furiosa com a brincadeira e procurou E. e J. para satisfações, mas os dois haviam sumido. O. exigiu seu dia com nossa infeliz heroína, mas A. disse que jamais daria seu primeiro beijo a um monstro como ele.

A. correu por todo o Jardim em busca de J. e teve mais uma terrível decepção. J. estava roubando seu primeiro beijo de E. às escondidas atrás da Árvore da Vida, enquanto aquele bafomé horrível os unia por uma corrente dourada e dizia: “Eu os declaro, marido e mulher”. A. então entendeu o sentido daquele demônio às costas de seu amigo. Aquele era um feitiço de amor. J. era esperta e sabia fazer este tipo de magia.

A pobre menina sentiu uma tonelada no peito e as pernas perderam as forças. Antes que a dor a pudesse despertar, O. surgiu sorrateiramente pelas suas costas, tomou seu braço e o torceu com tanta força que fez a menina cair de joelhos. O. era violento e teimoso. Jamais aceitaria um “não” como resposta.

- Você é minha pelo dia inteiro. É assim que a brincadeira é. Agora eu quero o beijo ao qual tenho direito.

Todos os meninos e meninas riam do destino de nossa heroína - passar o Dia dos Namorados com o nojento O. - e antes que A. pudesse fugir do Mundo 2, O menino monstro teve a honra de roubar seu primeiro beijo de amor.