segunda-feira, 28 de março de 2011

Paraíso

Despertei. Levantei a cabeça. Só então percebi onde estava.

Era uma sala de aula. Vazia. Eu tava lá dormindo, com a cabeça deitada nos braços cruzados sobre a carteira. A aula já devia ter acabado há um bom tempo. O que eu tava fazendo ali, até uma hora dessas?

Sai da sala. Já é tarde, eu pensei.

A escola inteira tava completamente vazia. As portas abertas. O ginásio. Não havia alunos nem professores. O portão tava aberto.

Sai devagar. Não havia ninguém na rua, mas a minha direita tinha um ponto de ônibus onde esperava uma menina de uniforme parecido com o meu. Ela tinha uma mochila nas costas, e tava lendo um livro, em pé, esperando o ônibus. Caminhei lentamente, quase querendo adiar a situação, até aquele ponto. Pensei em perguntar alguma coisa, mas ela parecia tão concentrada naquele livro que, no fim das contas, só passei reto pelo ponto de ônibus, olhando pra baixo. Ela nem me percebeu.

Continuei caminhando, já tava quase na esquina e não tinha a mínima idéia de para onde ir. Antes de atravessar a rua escutei um barulho atrás de mim. Olhei mais uma vez pra garota. Haviam chegado mais três caras naquele ponto. Estavam de bicicleta e não usavam uniforme do nosso colégio. Cercaram a garota. Ouvi risos. A garota tentou guardar seu livro e sair dali.

- Qual é a pressa, menina? Que é que você ta lendo ai? – falou o idiota.

Ela tentou fugir, mas foi cercada pelos outros patifes.

- Calma ai, gatinha. Tem um dinheiro ai? Sabe aquela brincadeira? É pagar ou dar um beijinho, o que acha? - falou o segundo, segurando o braço dela.

- Me deixe em paz, seu retardado - falou a garota, corajosa.

Eles riram.

- Oh, que medo! Ela tá nervosinha!

O primeiro idiota, num movimento rápido, tomou o livro da mão dela.

- Me devolve isso, seu idiota!

- O que é isso, um livro? Você é estudiosa então? Parece chato... Escuta, troco esse livro por um beijinho, feito?

Cansei de ficar lá, só assistindo aquela palhaçada. Resolvi voltar e interferir.

- Deixa ela em paz – falei, chegando sorrateiramente.

Não sentia medo. Nem um pouco. Só sentia raiva daquele paspalho. Os três me encararam curiosamente.

E quem é você, idiota? Namoradinho dela? É melhor cair fora antes que a gente arrebente você também.

Decidi que tinha que tentar. Antes que o idiota pudesse continuar falando baboseira, acertei um soco no olho dele. Minha mão explodiu na cara no infeliz, que caiu nocauteado. Nunca me senti tão forte. Tão poderoso. Desde o começo eu sabia que podia fazer aquilo. Arrebentar aquele idiota. Eu podia arrebentar os três juntos e ao mesmo tempo. Eu sabia disso.

Os outros dois pularam em mim. Levei um soco na cara, uns chutes mal dados nas pernas e uns socos na costela, mas a dor apenas aumentava minha força. Comecei a atacar. Meus golpes eram certeiros. Eles perceberam que não tavam ganhando briga nenhuma, pois eu nem sentia seus golpes. Resolveram pegar o cara caído e sair fora, anunciando aos berros que aquilo não ia ficar assim. Que eles iam me pegar uma hora ou outra e blá blá blá...

A garota tinha caído sentada ao lado, na grama. Ficou lá, assistindo a tudo, me olhando com estupefação. Fui até ela e ofereci minha mão.

- Você tá bem? – perguntei.

Ela se levantou, bateu a poeira da saia e sorriu pra mim.

- Puxa, isso foi muito legal. Obrigada!

Sorri também. Ela abriu um bolso da mochila, tirou um lenço branco e estendeu para miim.

- Tua boca tá sangrando. Eu sinto muito.

Então percebi que minha mão direita, a que eu usei pra distribuir socos, tava dormente. Meu corpo inteiro tava dolorido e, ao por a mão na boca, vi o vermelho do sangue. Nada daquilo me assustou. Muito pelo contrário, me deixou muito feliz. Aceitei o lenço e ri de mim mesmo. Eu me sentia tão especial após fazer aquilo que não saberia explicar.

- Não sinta, eu estou ótimo. Sério mesmo, nunca tive tão bem em toda a minha vida!

Ela riu de mim

- Você é estranho. Acho isso legal.

Eu, estranho? Ela que era, mas pensando bem eu era estranho sim. Tudo aquilo era estranho, de um jeito especial.

- Que livro é este que você tava lendo?

- Ah, – ela me mostrou a capa – eu peguei esse livro na biblioteca municipal. É sobre magia e esoterismo. Eu preciso renovar ele hoje, por isso to esperando o ônibus.

O livro era antigo, com uma capa grossa, verde, e uns escritos em dourado. As paginas eram amareladas. Parecia bem legal.

- Parece bem legal.

- E é! Você vai fazer alguma coisa agora? Se não, quer ir comigo até a biblioteca renovar esse livro?

De repente, toda a sensação de não ter pra onde ir sumiu.

- Ah, pode ser.

- Legal! É só esperar o ônibus então.

E a gente ficou lá, um ao lado do outro, olhando pra frente. Esperando o ônibus chegar, em silêncio, mas sem desconforto. Uns vinte segundos depois ela lembrou de perguntar:

- Qual é seu nome?

Pensei.

- Gray.

- É um nome bonito.

- Que nada. É só um apelido.

Ela riu. Foi meio estúpido, mas ela não parecia ligar

- Meu nome é Liz.

O ônibus chegou. A porta se abriu e nós dois subimos. O motorista era um homem sério, de cap ao estilo policial. Não parecia dar a mínima pra gente. A Liz foi entrando sem cerimônias.

- Espera!

- O que?

- A gente não precisa pagar pra entrar no ônibus? Ou mostrar uma carteirinha, um passe, sei lá?

Ela sorriu.

- Não se preocupe. Estudantes têm passe livre.

- Mas como ele sabe que somos estudantes?

Ela só puxou minha camiseta. O brasão da escola. É claro. Estávamos de uniforme.

O ônibus estava tão vazio quanto a escola ou a rua, com a exceção de um sujeito esparramado nos bancos do fundo, com um casacão enorme e uma toca enterrada na cabeça. Devia estar dormindo.

Sentamos em uma poltrona no meio do ônibus. Conversamos um pouco. Ela me falou sobre o livro que estava lendo. Parecia bem animada com aquela coisa. Foi tão rápido. O ônibus parou.

- É aqui que a gente desce.

Descemos no ponto logo em frente ao prédio branco, grande e imponente. Acima das portas estava escrito com letras grandes numa fonte elegante “Biblioteca Municipal”. Entramos. O lugar também estava vazio. O silencio era intenso. Ouvíamos apenas nossos passos, ecoando como trovões pelo salão de recepção. Atrás do balcão estava uma mulher que devia ter uns quarenta e poucos anos, mas alta e elegante, esguia, com roupas chiques, o cabelo preso em coque e um par de óculos levemente repousados sobre a ponta do nariz. A bibliotecária nos aguardava com um sorriso sereno.

- Oi! Eu queria renovar este livro.

Liz estendeu o livro à bibliotecária, que ajeitou os óculos ao ler o título.

- Ah... “Crônicas do Mundo 2”. Uma boa escolha, mas é um livro pesado para alguém de sua idade... Não! Pensando bem, é perfeito para alguém como você.

A mulher passou o leitor de código de barras no livro. Digitou algo no computador e carimbou a nova data de devolução.

- Pronto. Boa leitura.

- Obrigada. Tchau!

Quando saímos o horizonte estava tingido de sangue. O crepúsculo.

- Está anoitecendo... É melhor ir pra casa.

Pegamos o ônibus mais uma vez. Foi a mesma coisa. O mesmo motorista absolutamente indiferente à gente. Sentamos no mesmo banco. Falamos pouco, mas eu estava feliz em estar ao lado dela.

Mais uma vez, foi rápido demais.

- Ah, meu ponto é aqui - ela guardou o livro, ajeitou a mochila nas costas e se levantou – Foi legal te conhecer, Aaron. Te vejo na escola, e obrigada mais uma vez.

Um beijo no rosto e eu a vi descendo as escadas. O ônibus voltou a se mover. Ela saiu do meu campo de visão.

Era noite. Pela janela do ônibus, os postes passavam. Os semáforos. Me senti só, mais uma vez. Não sabia qual era meu ponto. Não sabia onde descer. Encostei a cabeça no vidro e fiquei lá por um tempo, vendo a cidade passar.

- Não sabe pra onde ir, não é?

Me virei. No banco de trás, aquele cara. O gorro enterrada na cabeça. A jaquetona desajeitada. O sujeito continuou.

- Não esquenta. Foi a mesma coisa comigo. Entrei nesse ônibus sem saber o ponto em que eu queria descer. Eu sei como você se sente. Daí você faz isso. Você encosta a cabeça no vidro e fica admirado com as luzes que passam. Uma hora a solidão passa e tudo que resta é a calma. Então você não sente pressa. Sente que ficar aqui, nesse onibus, vendo a cidade passar, é o melhor que você tem a fazer.

O sujeito era mesmo do tipo falador, mas ele tava certo.

- E o que você faz então? Perguntei

- Eu? Nada. Eu durmo. Gosto de dormir. Gosto de dormir em movimento.